13 de março de 2011
Inspiração machadiana e crime passional no Rio do século 19 estão em "O Dom do Crime"
Obra-prima é assim. Os anos passam e sempre haverá alguém preocupado em reinterpretá-la. Melhor quando a exegese vem em forma de outro grande livro, caso de “O Dom do Crime”, do pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marco Lucchesi (Editora Record). Erudito como deve ser um doutor em Filosofia da Renascença pela Universidade de Colônia, Alemanha, Lucchesi apresenta um texto instigante, bem desenvolvido e muito familiar ao universo machadiano.
Embora esteja claro tratar-se de um trabalho de pesquisador, a palavra “romance” está bem destacada na capa do livro, para que não restem dúvidas. O enredo parte de uma probabilidade: a de que Machado de Assis teria se inspirado num caso real de assassinato e traição ao construir seus Bentinho e Capitu.
O autor, então, estabelece paralelos entre o crime passional ocorrido no final do século 19 no Rio de Janeiro e a obra Dom Casmurro. Cria conexões, indica hipóteses e disseca o crime cometido pelo doutor José Mariano da Silva ao mesmo tempo em que se aprofunda na matriz literária de Machado.
É um romance, por assim dizer, um tanto policialesco, outro tanto de análise de construção narrativa. No quarto capítulo, por exemplo, o autor parte de uma colocação policial (sobre a confusão de provas na cena ensanguentada de um crime) para discutir o formato do texto de Machado.
“O êxito da página, insiste Machado, não devia repousar no volume de informações, quase sempre vulgares ou degradantes, mas na precisão sutil com que se mostram as ideias”, escreve o autor.
Sobre o crime em questão (não o do livro, mas o da realidade), Lucchesi se vale das informações apresentadas nos autos para apresentar Helena Augusta, de jovem e discreta beleza, e o marido, o doutor Mariano -- um homem que perde a consciência diante da traição.
Assim como Bentinho, o doutor Mariano é descrito como convém a um anti-herói – com um abismo entre o médico e o monstro. Custa ao leitor acreditar que aquele homem pacato e um tanto inseguro tenha matado de forma violenta e sem remorso. “A vida de José Mariano divide-se entre a medicina e o amor de Helena, que é o centro e a circunferência de seus dias. Amor etéreo. Amor fervoroso, como lembra a defesa, com a mulher a estremecer-lhe nos braços noites inteiras.”
Lucchesi se ocupa em coincidir datas e locais do crime bizarro com a narrativa de Machado, como se o autor tivesse em seu tempo sugado da vida cotidiana a inspiração para sua obra. Estão lá, entre descrição do real e da ficção, os triângulos amorosos, os amores proibidos e o mesmo cenário, a rua dos Barbonos -- presente em mais de uma história de Machado.
“Depois da Europa, a preferência da lua de mel dos fluminenses recaía sobre a Tijuca e a Praia Grande. Bentinho e Capitu se casaram numa tarde chuvosa de março de 1865. Procuravam os ares frescos da paisagem bucólica e distante da Tijuca. Já Helena e o marido, um ano depois, planejam uma estada em São Domingos, como quem repete a primeira viagem de núpcias.”
E assim seguem as referências, num texto difícil de largar antes da última página.
“Que semelhança podia haver entre Bentinho e Mariano para que se curassem de si mesmos?” Talvez essa seja uma pergunta que ficará na cabeça dos leitores por muito tempo.
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O Dom do Crime
Autor: Marco Lucchesi
Editora: Record
Páginas: 159 páginas
Preço: R$ 29,90
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